sábado, 7 de março de 2009

Essas charges me perseguem...


Cotidiano superlativo

A estranha.


De Myriam Paranhos
Todos os dias ela enfrentava o mesmo trajeto, eram as mesmas estradas, os mesmos rostos, mesmos cheiros e olhares. Até aquele dia. Foi aí que ela a conheceu, conheceu a mulher simples com suas roupas puídas, sandálias sujas, o cabelo que mais parecia um ninho de pássaros. Mas não foi isso que a fez parar. O que a fez parar foi o fato de que mesmo sendo tão pobre, a estranha parecia não estar se importando. Ela parecia estar apenas lá, vivendo um dia após o outro com a sua dor, como duas companheiras. E Sorrindo. Como se não bastasse ela estava SORRINDO, sim, como se estivesse zombando das cartas que a vida lhe deu. Mostrando aqueles dentes amarelados, com vestígios de alguma refeição feita a muito tempo,e a sua boca exalava um cheiro forte, quase insuportável. Ela não queria mais ficar olhando aquela estranha que a encarava. Sentia... medo? Nojo? Tristeza? Não sei. Ela só queria sair dali. Então com um grande enjôo, ela saiu. Voltou para a sua rotina, foi levando a vida, tentando esquecer o horror daquela face tão marcada por uma vida infeliz. Ela se foi, mas na pressa de se livrar da visão horrenda acabou não vendo que na verdade a estranha que havia cruzado seu caminho, era um espelho.

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:: Ciclo ::


De Renato Alt

Como fazia todos os dias, acordou cedo, antes do despertador, e colocou-se em frente ao espelho. Olhou para o rosto que lhe parecia cada vez menos familiar, para o cansaço que se acumulava em forma de olheiras, para o cabelo que lhe caía sobre a face sem que ninguém o houvesse tocado.

Escovou os dentes, na mesma ordem em que o fazia sempre: primeiro os de trás, depois os da frente, e bochechou com enxaguante de hortelã primeiro do lado direito e depois do esquerdo.

Fez o café, deu comida ao gato, engoliu dois comprimidos de codeína porque a cama já vinha há tempos acabando com suas costas. Era preciso um colchão novo, e repetia-o em voz alta vezes sem conta há mais de um mês.

Enquanto se arrumava, ouvia notícias ou alguma música. Impressionava-se com as histórias que vinham de lugares distantes, e colocava-se a pensar como seria estar ali, viver ali, andar por algumas das ruas que contam tanto a tantos.

Planejava há muito uma viagem para longe. Já havia juntado dinheiro suficiente, panfletos turísticos o suficiente, pesquisado o suficiente na internet e traçado roteiros o suficiente. Mas não havia tempo agora, afinal o trabalho se acumulava e, se não se livrasse dos papéis sobre a mesa, em breve estariam ocupando toda a sala. O cargo que mantinha em sua empresa não era o que queria da vida, sabia muito bem disso, e logo iria buscar algo que lhe fizesse mais feliz, que lhe fizesse um ser humano mais completo.

Já sabia o que era e em breve abraçaria a idéia. Repetia-o em voz alta vezes sem conta, há mais de dez anos.

Antes de sair, conferiu se todas as janelas e torneiras estavam fechadas. Conferiu a porta duas vezes. Seguiu para o elevador.

E foi para o trabalho, como fazia todos os dias.

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